Há 50 anos um dos episódios marcantes da recente historia brasileira ocorria. Insistindo na necessidade de cumprir-se a constituição a qualquer preço, o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, cunhado de João Goulart, mobilizou-se. Imediatamente formou a “Cadeia da Legalidade”, uma rede das rádios gaúchas que, desde o porão do Palácio Piratini, conclamava o povo a ir para as ruas a fim de dar o seu apoio à normalidade constitucional e contra o golpe da junta militar de Brasília.
As tropas da Brigada Militar foram então colocadas em estado de alerta para defender o Palácio e armou-se o clima de guerra civil. A capital do Estado, tornou-se, durante os doze dias que durou a crise, uma praça-de-guerra. O Brasil dividiu-se. De um lado estavam os legalistas, mobilizados por Leonel Brizola e apoiados por parte considerável da sociedade civil que mantinha-se fiel à constituição; do outro, alinhavam-se os golpistas da junta de Brasília, cuja sustentação civil mais significativa vinha do tonitruante Carlos Lacerda, o mais expressivo líder da UDN e velho inimigo dos getulistas.
O general Machado Lopes, comandante do III Exército, com controle sobre os Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, em nome da legalidade e para não precisar reprimir as massas que apoiavam o governador gaúcho nas ruas de Porto Alegre, terminou por aderir ao movimento. Gesto que provocou “um racha” nas forças armadas brasileiras.
Entrementes, políticos e militares do centro do país negociavam uma solução constitucional que evitasse uma guerra civil e superasse a crise. Destacava-se, entre eles, Tancredo Neves, hábil parlamentar mineiro que tinha livre trânsito entre as partes conflitantes (Tancredo Neves era um político conservador, mas fora ministro da justiça de Getúlio Vargas, em 1954). Com esse fim, aprovou-se a chamada solução parlamentarista.
Por meio da emenda constitucional nº 4, aprovada às pressas em 2 de setembro de 1961, alterava-se o regime republicano brasileiro, substituindo o presidencialismo pelo parlamentarismo. João Goulart foi informado que poderia ser empossado desde que aceitasse dividir o poder executivo com um primeiro-ministro indicado pelo Congresso.
O vice-Presidente, que estava retornando ao Brasil via Uruguai, concordou com a proposta em nome da paz política e para evitar derramamento de sangue. Voou então de Porto Alegre para Brasília para assumir um cargo com poderes podados. Numa emocionante cerimônia realizada no Congresso Nacional no dia 7 de setembro de 1961, ele finalmente conseguiu receber a faixa presidencial que Jânio Quadros não soubera honrar.
Os doze dias tensos que o país havia passado deram lugar a uma enorme sensação de alívio. A solução parlamentarista parecia ter pacificado os sentimentos agressivos que ambas as partes, esquerda e direita, demonstraram no decorrer do episódio. Ao tempo em que dava posse a Goulart, não humilhava os chefes militares envolvidos no movimento do seu impedimento.
As forças nacionalistas e esquerdista que se mobilizaram no apoio a ele, e de certo modo conseguiram impedir o golpe da junta militar, não se conformaram com as limitações impostas a Goulart pela emenda parlamentarista. Pressionaram o Presidente no sentido de realizar um plebiscito que restabelecesse a plenitude do presidencialismo no país, entendendo que era o momento dele retomar a ofensiva e recuperar, com o apoio do Congresso, as prerrogativas que os chefes militares tinham-lhe negado.
João Goulart sustentava-se ideologicamente nos nacionalistas, nos populistas e nos comunistas. Estas forças acreditavam que ele poderia vir a ser o grande reformador social que o país ansiava: o estadista capaz de realizar uma política de estatização dos setores estratégicos da economia, de dar espaço aos sindicatos, representados pela CGT (Central Geral dos Trabalhadores), e de fazer a tão ansiada reforma agrária nas terras dos latifundiários. Este programa amplo denominou-se Reforma de Base, e estava marcado pelo enfrentamento com os interesses dos proprietários em geral, apoiados pela grande imprensa conservadora.
Esse Programa também não contava com a simpatia ou o entusiasmo da classe média urbana que estava mais preocupada com a inflação e a crescente desordem social que grassava pelo país, manifestada pela onda ininterrupta de greves (se no governo de Jucelino houvera 177 em quatro anos, no período de Goulart, entre 1961-64, elas saltaram para 435). As preferências dos pequenos burgueses se inclinavam para os americanos e não para os cubanos. Mas para as esquerdas em geral, o governo Goulart representava uma situação cujo desenlace só poderia ser revolucionário.
O Presidente tinha ao seu lado os estudantes, representados pela UNE (União Nacional dos Estudantes), controlada pelos esquerdistas, os movimentos rurais como as Ligas Camponesas do Nordeste, lideradas pelo deputado Francisco Julião, do movimento Sem-Terra, do apoio dos escalões inferiores das Forças Armadas (suboficiais, sargentos, cabos e marinheiros) e da maioria dos sindicatos operários do país, ligados à CGT (Central Geral dos Trabalhadores). Tal ambicioso programa de reforma social e estrutural dificilmente poderia ser implementado se o presidente da república não tivesse seus poderes restaurados.
Ele tinha que deixar de parecer-se com a Rainha da Inglaterra, como então se dizia, “aquela que reina mas não governa”. Por fim, realizou-se o plebiscito. Em 6 de janeiro de 1963, o povo brasileiro manifestou-se por um sonoro “sim” a Goulart, apoiando a volta do presidencialismo. Sagrado pelas urnas, quando mais de 80% atendeu a sua demanda (10 milhões a favor do presidencialismo contra 2 milhões que foram pela continuidade do parlamentarismo), o Presidente recuperou a plenitude do seu mandato, emasculado pelo acordo de setembro de 1961.