Platão,
nascido em 428 a.C.,
é o primeiro grande filósofo da tradição ocidental a deixar uma obra escrita
considerável. Todavia, a obra de Platão só pode ser entendida em função de
outros pensamentos, anteriores e contemporâneos - de saída, o pensamento de seu
mestre Sócrates,
como também o pensamento dos filósofos anteriores, precisamente denominados pré-socráticos.
Tratemos,
inicialmente, de evocar Pitágoras de
Samos, que viveu no século V antes de nossa era e que sabemos ter
sido um ilustre matemático. Na realidade, sua matemática desemboca numa
metafísica, já que Pitágoras acredita que os números são o princípio e a chave
de todo o universo; assim como a natureza do som é função do comprimento da corda
que vibra, as aparências coloridas do universo, infinitamente diversas,
dissimulam relações numéricas que constituem o fundo das coisas: idéia capital,
que não só reencontramos em Platão, mas que está na origem da ciência moderna.
Pitágoras (que teria inventado a palavra filosofia, amor à sabedoria), também é
um místico, fundador de sociedades iniciáticas que visam à salvação de seus
membros. A doutrina pitagórica da salvação está muito próxima dos mistérios do
orfismo. Os pitagóricos acreditam na metempsicose. A alma, como punição de
faltas passadas, torna-se prisioneira de um corpo (soma = sema; corpo =
túmulo). A encarnação é tão somente um encarceramento provisório para a alma. A
morte anuncia o renascimento num outro corpo até que a alma, simultaneamente
purificada pela virtude e pela prática de ritos iniciáticos, mereça ser
finalmente libertada de toda materialização.
Muitas
outras doutrinas dessa época tentam explicar o mundo. Empédocles vê na matéria
quatro elementos (terra, água, ar e fogo), enquanto o ódio que dissocia e o
amor que unifica seriam os princípios motores do universo. Anaxágoras, que foi
professor de Péricles, acha que os elementos constitutivos do mundo são
ordenados por uma Inteligência cósmica, o Nous.
Duas
doutrinas se opõem radicalmente entre si. Para Heráclito de
Éfeso, tudo muda infinitivamente. "Planta rei", tudo
flui: a morte sucede à vida, a noite ao dia, a vigília ao sono. "Não nos
banhamos duas vezes no mesmo rio". O fluxo que faz do universo uma
torrente é constantemente produzido e destruído por um Fogo cósmico, segundo um
ritmo regular. A esta filosofia da mobilidade universal se opõem Parmênides e
seu discípulo Zenão de
Eléia: para eles, a mobilidade não passa de uma ilusão que engana
nossos sentidos; o real é o Ser único, imóvel, eterno. "O Ser é, o
não-ser não é"; o não-ser é a mudança (mudar é deixar de ser o que se é
para ser o que não se é). Demócrito
tenta conciliar as duas doutrinas por intermédio de sua filosofia de átomos,
elementos eternos, cujas combinações mutáveis são infinitas.
Diremos
uma palavra sobre os sofistas, cujo ceticismo é engendrado pela multiplicidade
de doutrinas contraditórias, pelo abuso da retórica (um orador hábil pode
demonstrar o que quiser) e, de um modo geral, pelo incremento do individualismo
e decadência dos costumes após Péricles.
Um
dos mais célebres, Protágoras de
Abdera, dizia, segundo o testemunho de Platão, que "o homem é a
medida de todas as coisas". Em outras palavras: não existe verdade
absoluta, mas tão somente opiniões relativas ao homem (este vinho, delicioso
para o amador, é amargo para o enfermo).
Platão,
no entanto, só reencontra a filosofia a partir de preocupações de caráter
político. É um jovem aristocrata que une aos seus dons intelectuais e físicos
(duas vezes coroado nos jogos atléticos nacionais, é belo e vigoroso:
apelidam-no "Platão" em virtude de seus ombros largos), o
nascimento mais prestigioso: sua mãe descendia de Sólon, seus ancestrais
paternos, do último rei de Atenas. Estava destinado, portanto, a uma brilhante
carreira política. Mas Atenas, que por ocasião do nascimento de Platão se
encontra no apogeu - com inigualável poder marítimo - , esboroa-se na época em que Platão atinge a
idade adulta. Platão tinha quatro anos quando começaram as guerras do
Peloponeso e trinta e um quando eles terminaram, com a capitulação de Atenas. A
destruição da frota, a peste, o arrasamento dos famosos muros (uniam a cidade
ao Pireu) pelos esparciatas vencedores, assinalam a importância da catástrofe.
Platão vai sonhar com a reconstrução de uma cidade, mas uma cidade cuja
potência é antes moral e espiritual do que material, uma cidade que seja a
encarnação da Justiça.
Para
compreender isto, recordemos o acontecimento fundamental da juventude de
Platão, seu encontro com Sócrates.
Sócrates tem sessenta e três anos quando, em 407, Platão a ele se une. Alain
falou a propósito desse "choque dos contrários": Platão, aristocrata
jovem e belo, torna-se discípulo de um cidadão de origem modesta, velho e muito
feio (seus olhos salientes e seu nariz achatado são célebres). E isto é
significativo e simbólico. A verdade e a justiça (das quais Sócrates será o
símbolo) não possuem bom aspecto, pertencem a um mundo que não o das
aparências. Na Atenas vencida, o jovem Platão é convocado por parentes e amigos
a participar do governo autoritário dos Trinta; ele se retrai, porém, e
constata que os Trinta acumulam injustiças e violências. Devemos agora,
portanto, caracterizar os grandes traços da filosofia de Sócrates:
1.
Sócrates não pretende, como Empédocles ou Heráclito, elaborar uma cosmologia;
segundo ele, deve-se deixar aos deuses o cuidado de se ocupar com o universo;
devemos nos interessar, de preferência, por aquilo que nos concerne
diretamente. "Conhece-te a ti mesmo". Esta máxima gravada no
frontão do templo de Delfos, é a palavra-chave do humanismo socrático.
2.
Sócrates, todavia, não pretende ensinar coisa alguma sobre a natureza humana;
não quer nos comunicar um saber que não possuiríamos. Ajuda-nos tão somente a
refletir, isto é, a tomar consciência dos nossos próprios pensamentos, dos
problemas que eles colocam. Muitas vezes, ele se comparava à sua mãe, que era
parteira. Nada ensinava e limitava-se a partejar os espíritos, ajudá-los a
trazer à luz o que já trazem em si mesmos. Tal é a maiêutica socrática.
3.
Ao mesmo tempo que convida o interlocutor a tomar consciência de seu próprio
pensamento, Sócrates fá-lo compreender que, na verdade, ignora o que acreditava
saber. Tal é a ironia, que, ao pé da letra, significa a arte de interrogar.
Sócrates, de fato, faz perguntas e sempre dá a impressão de buscar uma lição no
interlocutor. Aborda com humildade fingida os sofistas inflados de falso-saber.
E as perguntas feitas por Sócrates levam o interlocutor a descobrir as
contradições de seus pensamentos e a profundidade de sua ignorância.
4.
Na realidade, se Sócrates é o primeiro a reconhecer sua própria ignorância, ele
funda todas as suas esperanças na verdade tão somente. Seu método é, antes de
tudo, um esforço de definição. Por exemplo: partindo dos aspectos os mais
diversos da justiça, ele procura depreender o conceito de justiça, a idéia
geral que contém os caracteres constitutivos da justiça. Sócrates possui tal confiança
no saber e na verdade que está firmemente persuadido que os injustos e os maus
não passam de ignorantes. Se conhecessem verdadeiramente a justiça, eles a
praticariam, pois ninguém é "maus voluntariamente". Segundo sua
perspectiva racionalista, só há salvação pelo saber. O verdadeiro ponto de
partida da filosofia de Platão é a morte de Sócrates em 399 a.C. Acontecimento
político: é o partido popular, de novo no poder, que, por iniciativa de um
certo Anytos (filho de um rico empreiteiro e antigo amigo dos Trinta, aos quais
traiu para assumir a liderança do outro partido), condena Sócrates a beber a
cicuta como corruptor da juventude e adversário dos deuses da cidade.
Condenação injusta e escandalosa que exprime uma incompatibilidade trágica
entre o poder político e a sabedoria do filósofo. Daí as resoluções que Platão
nos apresenta na sétima carta. "Reconheço que todos os Estados
atuais, sem exceção, são mal governados...É somente pela filosofia que se pode
discernir todas as formas de justiça política e individual". Talvez a
solução seja a evasão do filósofo que "foge daqui debaixo" para se
refugiar na meditação pura (tal é o filósofo cujo retrato nos é traçado no
Teeteto; filósofo puramente contemplativo que nem sabe onde se reúne o Conselho
e cujo corpo está apenas presente na Cidade). Mas uma outra solução seria o
próprio filósofo encarregar-se do governo da cidade (a Justiça reinará, diz
Platão, no dia em que os filósofos forem reis ou no dia em que os reis forem
filósofos).
Tal
é o sonho que Platão tentaria realizar em Siracusa. Encontrara
aí um discípulo estusiasta na pessoa de Dion, cunhado do novo tirano, Dionísio
I. Este último, todavia, não se revelou muito adequado para se tornar o rei
filósofo que Platão quisera fazer dele. Dionísio I prendeu Platão e, na ilha de
Egina, fê-lo expor no mercado de escravos para ser vendido. Resgatado por
Anikeris de Cítera por vinte minas, Platão retornou a Atenas.
É
então que ele funda, aos quarenta anos, uma escola de filosofia à portas da
cidade, perto de Colona, nos jardins de Academos. Devemos representar a
Academia como uma espécie de Universidade onde se ensina matemáticas (não entra
aqui quem não for geômetra), filosofia e a arte de governar as cidades segundo
a justiça. O ensino esotérico (isto é, secreto, reservado aos iniciados) dado
por Platão a seus discípulos só nos é conhecido atualmente pelas críticas de
Aristóteles; restam-nos, porém, a obra escrita de Platão, seus diálogos
célebres tais como o Górgias,
o Fedro, o Fédon, o Banquete, a República, o Teeteto, o Sofista, o Político, o
Parmênides, o Timeu, as Leis. Esses trabalhos esotéricos de Platão constituem a
mais pura jóia da filosofia de todos os tempos. Platão morre em 348 a.C.
Se
quiséssemos resumir a filosofia de Platão em uma palavra, poderíamos dizer que
ela é fundamentalmente um dualismo. Platão, de certo modo, reconcilia
Parmênides e Heráclito
ao admitir a existência de dois mundos: o mundo das idéias imutáveis, eternas,
e o mundo das aparências sensíveis, perpetuamente mutáveis. Acrescenta-se que o
mundo das Idéias é, no fundo, o único mundo verdadeiro. Platão concede ao mundo
sensível uma certa realidade, mas ele só existe porque participa do mundo das
idéias do qual é uma cópia ou, mais exatamente, uma sombra. Um belo efebo, por
exemplo, só é belo porque participa da Beleza em si.
Podemos
mostrar de duas maneiras que a intuição fundamental de Platão se prende ao
ensinamento de Sócrates:
a)
Recordemos o ensinamento socrático sobre a definição, sobre o conceito; para
que haja, por exemplo, como Sócrates o
estabeleceu, uma definição do homem em geral, uma essência universal do homem,
é preciso que exista algo além dos homens particulares e diferentes entre si
que nós reconhecemos, um outro mundo onde exista o Homem em si, a Justiça em
si, isto é, as Idéias. Em suma, Platão dá realidade ao conceito socrático. A
idéia platônica é uma promoção ontológica do conceito socrático.
b)
Mas é sobretudo a vida e a morte de Sócrates que suscitam o idealismo
platônico. Como diz muito bem André Bonnard, a cidade que condena Sócrates à
morte, a cidade que vê triunfar a injustiça e a mentira é "um mundo ao
inverso, um mundo de pernas para o ar". Desse modo, o idealismo platônico
"traz a marca de um grave traumatismo. A morte de Sócrates feriu-o
mortalmente. É no mundo invisível que a justiça e a verdade triunfam". E
Sócrates, pela tranqüilidade quase contente de sua morte, atesta a existência
desse mundo invisível, mostra que, para ele, as Idéias contam mais que a vida.
Os
temas principais do platonismo podem ligar-se à distinção entre o mundo das
Idéias eternas e o mundo das aparências mutáveis. A ascensão dialética, por
exemplo, é o itinerário pelo qual nos levamos do mundo sensível ao mundo das
Idéias: no mais baixo grau, as simples impressões sensíveis (eikasia), um pouco
mais acima, as opiniões estabelecidas (pistis), em seguida, o pensamento
discursivo (dianoia) que constrói o raciocínio partindo de figuras, como fazem
os geômetras, e, finalmente, no mais alto grau, o pensamento intuitivo, a
iluminação direta pela Idéia (noesis).
A
teoria platônica da alma está ligada à doutrina das Idéias. As almas outrora
contemplaram às Idéias à vontade. Depois, por punição de alguma falta, segundo
a doutrina órfico-pitagórica, elas foram aprisionadas no corpo. Todavia, elas
continuam capazes de reminiscência, uma vez que guardaram uma lembrança obscura
- que, no entanto, pode ser redespertada - de seu antigo contato com as Idéias.
Assim, o jovem escravo que Sócrates interroga no Mênon descobre propriedades
geométricas quase sem ajuda. Platão pensa igualmente que a emoção amorosa, a
emoção que rebata a alma diante da Beleza - de todas as idéias a mais fácil de
reconhecer - é o meio de uma conversão dialética: o amor por um belo corpo, em
seguida pelos belos corpos, depois pelas belas almas e pelas belas virtudes
conduz à redescoberta do Belo em si (leia-se o Banquete).
À
doutrina das Idéias também se correlaciona a esperança da imortalidade da alma,
"esse belo risco a ser corrido". Uma vez que a alma é feita para as
Idéias - visto que sua união com o corpo é acidental e monstruosa - por que não
seria eterna como as Idéias que ela tem por vocação contemplar?
Do
mesmo modo, uma vez que as Idéias constituem absolutos referenciais - não o
homem, mas Deus é que é a medida de todas as coisas, objeta Platão a Protágoras
- é preciso renunciar do oportunismo e à imoralidade dos sofistas. Platão
sustenta contra Cálicles (no Górgias), contra Trasímaco e Gláucon (na
República) o valor absoluto da Idéia de justiça. A justiça é a hierarquia
harmônica das três partes da alma - a sensibilidade, a vontade e o espírito.
Ela também se encontra em cada uma das virtudes particulares: a temperança nada
mais é que uma sensibilidade regulamentada segundo a justiça; a coragem é a
justiça da vontade e a sabedoria é a justiça do espírito.
A
justiça política é uma harmonia semelhante à justiça do indivíduo, mas
"escritas em caracteres mais fortes" na escala do Estado... A
política de Platão distingue, à imagem de todas as sociedades indo-européias
primitivas, três classes sociais: os artesãos dos quais a Justiça exige a
temperança, os militares nos quais a Justiça será coragem, os chefes cuja
Justiça é, antes de tudo, Sabedoria e que são filósofos longamente instruídos.
Entre todas as formas de governo, Platão prefere a aristocracia e, nele, é
preciso tomar a palavra em seu sentido etimológico: governo dos melhores.
Finalmente,
podemos ligar à distinção dos dois mundos algumas observações sobre o mito
platônico:
a)
O mito, procedimento pedagógico paradoxal, traduz uma espécie de narração
poética legendária, isto é, numa linguagem de imagens uma verdade filosófica
estranha ao mundo sensível! É o mundo das Idéias eternas transposto em imagens
sensíveis, sugerido pelo mundo das imagens!
b)
O mito é o único meio de exposição para os problemas de origem (acontecimentos
sem testemunhos) e dos fins últimos (que ainda não existem!), pois a
inteligência abstrata só compreende o eterno e não pode bastar para evocar o
que pertence à história.
c)
O mito indica que o pensamento filosófico vem se abeberar nas fontes das
crenças religiosas tradicionais.
d)
Finalmente, o mito ressalta as relações que, segundo Platão, existem entre a
poesia e a verdade. A poesia mítica é uma mensagem metafísica, o belo não é senão
o "esplendor do verdadeiro" e a arte está em segundo lugar em relação
à filosofia.